sexta-feira, 14 de março de 2008

Certa manhã clareou o sol, após anos chuvosos,
e as poças d'água reproduziram os olhares desconfiados
das pessoas que relutantes abriam as janelas.
Um homem, possuidor de uma barba grisalha e reluzente,
além de um vasto conhecimento sócio-político-teológico-cultural,
admitiu que era aquele um fato surpreendente
visto que o sol estava há tanto tempo esquecido.
Pediu à sua senhora que não lhe incomodasse em seu gabinete
durante vários meses, pois tinha miríades de ensaios
e teses para produzir.
A menina-mulher namoradeira viu naquele dia único
um pretexto suficiente para procurar um garboso marido.
Todas as suas amigas já vestiam as mãos com vistosas alianças
e ela começava a ser motivo de chacota.
Trancou-se em seu quarto e em frente da penteadeira
trançou os cabelos negros e perfumou-os com almíscar.
E mediante a importância e singularidade da ocasião
jurou não levantar-se até sentir-se como Afrodite.
Já a viúva do saudoso Sr. Campos Netto Albuquerque,
respeitado e ilustre conhecedor das obras camonianas,
tomada de uma comoção quase divina
viu naquele dia a mão do Senhor, e como devota fiel
de Nossa Senhora dos Milagres,
tomou o rosário entre as mãos esqueléticas
e enclausurou-se diante de um pequeno e perfumado altar
onde prometeu rezar durante seis meses ininterruptos.
Por sua vez, um menino,
considerado por todos tímido e idiota,
visto que não tinha ensaios para elaborar,
amantes para se apaixonar e nem deuses para rezar,
correu às ruas com suas pernas tortas e desengonçadas
e deitou-se a pular sobre as poças d'água
quebrando o céu azul em milhares de gotas refletidas.

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