E foi então que eu a reparei...
Dormia profundamente e seus cabelos negros se esparramavam delicadamente pelo rosto, ocultando-lhe a face. Quem seria? Tentei afastar seu cabelo, mas ao menor movimento ela virou-se, ainda dormindo, deixando no ar um perfume adocicado e enjoativo, que me lembrou por alguns segundos algo quase imperceptível.
Passei as vistas ao redor do quarto, buscando reconhecer algo familiar. As paredes brancas sustentavam nada mais que alguns quadros anônimos de natureza morta, daqueles que se vendem em qualquer estação. O carpete marrom parecia muito limpo e uma pequena poltrona azul descansava perto da janela. Sobre a penteadeira estavam alguns frascos, de perfume provavelmente, vários bibelôs de louça representando anjos, fadas e pequenos animais, e um enorme porta jóias preto ornamentado com caracteres japoneses. Nada de muito expressivo, nada que me faça lembrar o que não sou. Tudo parece invariavelmente organizando, ultrapassando os limites entre o confortável e o patético.
Talvez eu devesse me levantar, talvez eu devesse me levantar e ir embora. Talvez eu devesse acordá-la chacoalhando-a pelos ombros e perguntar-lhe quem era ela, quem eu era, quem nós somos, quem nós éramos. Mas algo inevitável me impele de permanecer exatamente como estou, aonde estou e como sou, como um caracol aprisionado em sua própria existência.
Do quarto ao lado ouço estridentes vozes de crianças. Filhos? Não, não lembro de tê-los. Daria o nome de Hélio se fosse menino, e se fosse menina...não sei. Estela talvez. Provavelmente procuraria um nome nos livros e nas enciclopédias e quando me desse conta ela já seria uma adolescente e eu nem a teria visto crescer. Na verdade acho que nunca vi nada crescer. Sempre procurei o que já estava pronto, nunca criei, nunca fiz, nunca fui.
Mais uma vez voltei minha atenção para a mulher ao meu lado. Seu rosto permanecia oculto mas seus cabelos deixavam entrever uma pequena matiz da sua tez. Seu corpo estava coberto somente em partes pelo lençol, expondo uma nudez tão confortável, tão segura que me impeliu a abraçá-la e aninhá-la em meus braços. Ainda dormindo ela se acomodou perfeitamente dentro do meu abraço, como se sempre estivera ali. Como se fosse meu corpo de rocha moldado durante anos pelas ondas macias do seu corpo.
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